domingo, 17 de outubro de 2010

A Tradição Viva

 
A. Hampaté Bâ




"A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é a luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente."
                                                                    Tierno Bokar¹


Árvore Baobá                                                                                                                                                                                       

                                                           Quando falamos de tradição em relação à historia africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apóie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientimente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África.
    Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural, durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente, esse conceito infundado começou a desmoronar após as duas últimas guerras, graças ao notável trabalho realizado por alguns dos grandes etnólogos do mundo inteiro. Hoje, a ação inovadora e corajosa da Unesco levanta ainda um pouco mais o véu que cobre os tesouros do conhecimento transmitidos pela tradição oral, tesouros que pertencem ao patrimônio cultural de toda a humanidade.
    Para alguns estudiosos, o problema todo se resume em saber se é possivel conceder à oralidade a mesma confiança que se concede à escrita quando se trata de testemunho de fatos passados. No meu entender, não é esta a maneira correta de se colocar o problema. o testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem.
   Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor matém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele os narra.
   Nada prova apriori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitidos de geração a geração. As crônicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz (na África), cada partido ou nação "enxerga o meio-dia da porta de sua casa" - através do prisma das paixões, da mentalidade particular, dos interesses ou ainda, da avidez em justificar um ponto de vista. Além disso, os próprios documentos escritos nem sempre se mantiveram livres de falsificações ou alterações, intencionais ou não, ao passarem sucessivamente pelas mãos dos copistas - fenômeno que originou, entre outras, as controvérsias sobre as "Sagradas Escrituras".
   O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmição de qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem e a palavra.
   É, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre homem e a Palavra é mais forte. Lá onde não existe a escrita, o homem esta ligado a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é.  A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. Em compensação, ao mesmo tempo que se difunde, vemos que a escrita pouco a pouco vai substituindo a palavra falada, tornando-se a única prova e o único recurso; vemos a assinatura torna-se o único compromisso reconhecido, enquanto o laço sagrado e profundo que unia o homem à palavra desaparece pregressivamente para dar lugar a títulos universitários convencionais.
    Nas tradições africanas - pelo menos nas que conheço e uqe dizem respeito a toda região de savana ao sul do Saara -, a palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de "forças etéreas", não era utilizada sem prudência.
   Inúmeros fatores - religiosos, mágicos ou sociais - concorrem, por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmissão oral. Pareceu-nos indispensável fazer ao leitor uma breve explanação sobre os fatores, a fim de melhor situar a tradição oral africana em seu contexto o esclarecê-la, por assim dizer, a partir do seu interior.
   Se formulássemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista* africano: "o que é tradição oral?", por certo ele se sentiria embaraçado. Talvez responde simplesmente, após longo silêncio: "É o conhecimento total".
   O que, pois, abrange a expressão "tradição oral"? que realidades veicula, que conhecimento transmite, que ciência ensina e quem são os transmissores?
   Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradição oral africana, com efeiro, não se limita a histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou históricos, e os griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores qualificados.
    A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo por menos sempre nos permite remontar à Unidade primordial.
   Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana.
   Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a "cultura" africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no mundo - um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem.
   A tradição oral basea-se em uma certa concepção do homem, do seu lugar e do seu papel no seio do universo. Para situá-la melhor no contexto global, antes de estudá-la em seus vários aspectos devemos, portanto, retornar ao próprio mistério da criação do homem e da instauração primordial da Palavra:o mistério tal como ela o revela e do qual emana.

¹ Tierno Bokar Salif, falecido em 1940, passou a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande mestre da ordem mulçumana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos africanos. CF. Hampaté Bâ, A. w Cardaire, M., 1957. 
* O termo tradicionalista significa, aqui, detentos do conhecimento transmitido pela tradição oral (N. do T.). 

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